O Sucesso de Ainda Estou Aqui e a Fotografia de Adrian Teijido
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Ainda Estou Aqui: Memória, Resistência e Sensibilidade
O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles em seu retorno aos longas depois de mais de uma década, é uma obra-prima do cinema brasileiro que resgata a memória de uma das épocas mais sombrias da história do país, a ditadura militar.
Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o longa aborda o desaparecimento de Rubens Paiva, ex-deputado federal e engenheiro, sob a repressão do regime, e o impacto dessa perda na vida de sua esposa, Eunice Paiva, e seus filhos. Reconhecido internacionalmente por obras como Central do Brasil e Diários de Motocicleta, Salles combina sua sensibilidade característica com uma estética visual que remete à memória e à nostalgia.
Desde sua estreia comercial no dia 7 de novembro, a narrativa sensível e intimista tem encantado plateias em todo o mundo e, segundo dados da Comscore, se tornou a maior bilheteria do cinema brasileiro no pós-pandemia. Ainda em cartaz, o filme já alcançou a marca de 2,5 milhões de espectadores e um faturamento de 53,9 milhões de reais, ultrapassando diversos blockbusters internacionais do momento, algo raro no cinema nacional.
Foto por Alile Dara Onawale
O sucesso do longa transcende o campo comercial, alcançando um impacto cultural e artístico significativo, com aclamações em festivais e uma trajetória que o posiciona como forte concorrente ao Oscar 2025. Inclusive, já conquistou diversas indicações e alguns prêmios, como o de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, onde teve sua primeira exibição no dia 1º de setembro e foi ovacionado durante 10 minutos pela plateia.
Ainda em setembro, o filme foi selecionado pela Academia Brasileira de Cinema como representante no Oscar e as expectativas estão altíssimas, principalmente para as categorias de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz, ainda mais após as recentes indicações ao Globo de Ouro. A lista com os pré-selecionados nas principais categorias vai ser divulgada no dia 17 de dezembro, já a lista oficial de indicados será lançada no dia 17 de janeiro.
Parte da equipe e elenco no Festival de Veneza. Foto: Divulgação.
Uma História Contada pela Ausência e Intimidade
Em vez de se concentrar nos horrores explícitos da violência, Ainda Estou Aqui destaca a ausência deixada por Rubens Paiva, retratando a dor e a resiliência de sua família. Apesar das particularidades da história do Brasil, o drama se tornou universal justamente pelo foco na família, é um filme que “traz o público para dentro da intimidade de uma família que foi dilacerada pelas ações da ditadura”, como disse Fernanda Torres em uma entrevista a jornalista Heloisa Tolipan.
Inclusive, na infância, Salles frequentava a casa da família Paiva, o que dá ao filme um tom ainda mais íntimo. A relação super saudável e carinhosa entre o casal e seus filhos, junto ao clima solar e alegre, fazem o espectador se conectar à história e se apegar aos personagens de cara. Até que a ausência e as sombras tomam conta e sentimos a falta do pai tão querido enquanto observamos com extrema atenção as reações e os olhares de Eunice e seus filhos.
Cena do filme 'Ainda Estou Aqui'. Foto: Divulgação.
A Profundidade da Atuação de Fernanda Torres
A força de Eunice Paiva, interpretada magistralmente por Fernanda Torres, é o fio condutor da trama. Durante a obra, acompanhamos a transformação de uma dona de casa em vítima da ditadura e depois em advogada e ativista dos direitos humanos. Fernanda se dedicou intensamente à personagem, vivendo por um ano sob a perspectiva de Eunice. Sua transformação incluiu perder 10 kg e mergulhar em emoções como o luto e a resiliência, sempre com um tom de contenção que enfatiza as nuances de sua atuação.
A força de Eunice reside em sua contradição: uma mulher que esconde a verdade dos filhos para proteger sua inocência, mas que se reinventa para cuidar da família e enfrentar adversidades. É a personificação de uma luta silenciosa, contida nas emoções, mas extremamente poderosa. Fernanda Torres, em um dos papéis mais desafiadores de sua carreira, já recebeu indicação ao Globo de Ouro e venceu o Critics Choice Awards como Melhor Atriz de Filme Internacional.
Cena do filme 'Ainda Estou Aqui'. Foto: Divulgação.
A Fotografia de Adrian Teijido
Em Ainda Estou Aqui, Salles trabalhou em colaboração com o diretor de fotografia Adrian Teijido e juntos construíram uma transição visual e emocional: a luminosidade inicial do filme, que simboliza possibilidades, dá lugar a um ambiente de sombras e silêncios após o desaparecimento de Rubens Paiva. Inspirada nas obras de Vilhelm Hammershoi, a fotografia busca retratar a ausência e o sufocamento.
Segundo Salles, em uma entrevista a Scream & Yell, o pintor dinamarquês “talvez seja um dos pintores que tenha mais bem trabalhado a questão da falta e da ausência” e foi através de um livro do artista que ele compartilhou com Teijido e o operador de câmera, Lula Cerri, que eles construíram a lógica visual dessa parte do filme.
O Foco na Memória
A direção de fotografia foi assinada pelo Adrian Teijido, que assumiu o desafio quando a equipe já estava formada e teve pouco tempo de pré-produção. Mas que em nada afetou o resultado super cuidadoso, fruto de muitos ensaios e testes, tanto dos negativos, quanto das cores dos cenários e figurinos.
No processo fotográfico, o diretor de fotografia mergulhou na textura emocional do filme, com foco total na memória, utilizando da película para capturar o grão e a imperfeição, elementos essenciais para evocar a atmosfera dos anos 1970. Eles queriam transmitir as emoções e sensações da época para além da ditadura, pois foi um período muito específico. Mesmo em tempos de repressão, vivia-se uma efervescência cultural intensa com a bossa nova, Tropicália, Clube da Esquina e muitos outros. Era preciso retratar esse Rio de Janeiro cultural, musical e tropical, junto à relação forte da família Paiva com o mar e a praia, visto que moravam justamente em frente à praia do Leblon.
Teijido, que já tinha em seu currículo filmes como Marighella, trouxe sua bagagem da extensa pesquisa visual que já havia feito daquele período, além de ser filho de cineastas argentinos que vieram para o Brasil no meio do regime em 1968.
Junto disso, o filme foi “costurado” por fotografias. Houve um trabalho rigoroso de reconstituição de imagens originais, de fotos e vídeos da família Paiva com os personagens do filme, reconstruindo os papéis fotográficos e as texturas. Reforçando ainda mais a questão da memória.
À esquerda, fotos originais da família Paiva e à direita, imagem recriadas pelo filme 'Ainda Estou Aqui'. Foto: Divulgação.
O Grão como Elemento Narrativo
O filme é dividido em três fases principais: os anos 1970, 1996 e 2014, com variações visuais entre elas, utilizando diferentes câmeras, lentes e filmes. Na primeira, escolheram uma câmera Aaton, lentes Panavision Primo e um filme de 500 asas, inclusive puxando 1 Stop para subexposição, intensificando o grão e adicionando mais dramaticidade às cenas a partir do momento que Rubens Paiva é levado para depor. Na segunda fase, o conceito mudou, usaram uma Arricam com lentes Leica Summilux e um filme de 200 asas, obtendo uma transição para um grão mais fino nos anos 2000.
O uso de câmeras Super-8 também foi um elemento super importante para evocar a memória daquela época e trazer uma interpretação emocional ao filme, visto que as duas disponíveis em set foram operadas inclusive pelos próprios atores, o que contribuiu para a autenticidade do filme.
Cenas do filme com câmera Super-8. Foto: Divulgação.
Enquadramentos e Movimentos de Câmera
Teijido adotou principalmente planos médios e planos-sequência, com alguns poucos planos gerais do Rio de Janeiro, permanecendo perto dos personagens, destacando sua relação dramática com o ambiente, mas mantendo uma narrativa fluida e contida.
Os quadros vão ficando mais fechados com o desenvolvimento do drama, mas o filme evita closes, com raras exceções como a da cena na sorveteria com a personagem de Fernanda Torres, que é um turning point para Eunice Paiva.
Em relação aos movimentos de câmera, o diretor de fotografia e Walter Salles usaram movimentos de câmera mais coreografados, como o Dolly Panther com trilhos, permitindo uma fluidez e beleza nas interações dos personagens.
Cenas do filme 'Ainda Estou Aqui'. Foto: Divulgação.
Efeitos Especiais
A casa original, onde a família Paiva vivia, não existe mais e foi substituída por uma residência semelhante encontrada no bairro da Urca depois de muita pesquisa. E então foi "transportada" para o Leblon por meio de efeitos especiais sofisticados que nem percebemos, mantendo a ilusão de que a casa continua existindo no Leblon.
À esquerda, casa original da família Paiva e à direita, casa recriada no filme.
Os Desafios do Formato
A finalização do longa enfrentou desafios logísticos e técnicos devido à escassez de laboratórios de revelação de película no Brasil. O material principal do filme foi enviado para revelação na França, aproveitando a coprodução francesa para otimizar custos. Já os negativos da Super-8, adquiridos nos Estados Unidos e na Europa, foram revelados em um laboratório de garagem na Inglaterra. E no fim, todos os rolos de filmes foram digitalizados na França.
O processo de correção de cor foi extenso e colaborativo, iniciado com o colorista offline Thomas Debauve, depois com Arthur Paux em Paris e posteriormente concluído em Nova York por Mike Howel, devido a atrasos no cronograma e indisponibilidade do time original.
Além disso, a mixagem de som também foi realizada na França, apenas um mês antes de sua estreia no Festival de Veneza, evidenciando os desafios técnicos e artísticos enfrentados ao trabalhar com formatos analógicos e um cronograma intenso.
Reconhecimento Internacional
Além do sucesso em festivais, o filme quebrou recordes de bilheteria no Brasil e conquistou o público em escala global. Com indicações ao Globo de Ouro e forte potencial para o Oscar, Ainda Estou Aqui destaca-se como uma das obras mais importantes do cinema brasileiro recente.
Principais Premiações e Reconhecimentos
O filme recebeu diversas indicações e prêmios importantes, incluindo:
- 81º Festival de Cinema de Veneza: Melhor Roteiro (Murilo Hauser e Heitor Lorega), Green Drop Award e SIGNIS Award;
- Festival Internacional de Cinema de Vancouver: Gala & Special Presentations Audience Award pelo público;
- Festival de Cinema de Mill Valley: Audience Favorite World Cinema pelo público;
- Critics Choice Awards: Fernanda Torres foi homenageada pelo prêmio na "Latino Celebration" como destaque de Atriz de Filme Internacional e o filme foi indicado na categoria de Melhor Filme de Língua Estrangeira;
- 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Prêmio do público de melhor filme de ficção nacional;
- Festival de Cinema de Miami: Audience Award pelo voto popular;
- Festival Internacional de Cinema de Pingyao: Walter Salles recebeu o prêmio Crouching Tiger Hidden Dragon East-West Award;
- National Board of Review Awards: Menção honrosa como um dos cinco melhores longa metragens internacionais;
- Globo de Ouro 2025: Indicações nas categorias de Melhor Filme de Língua Não-Inglesa e Melhor Atriz de Filme de Drama com Fernanda Torres;
- Las Vegas Film Critics Society: Indicação como Melhor Filme Internacional;
- New York Film Critics Online: Indicação como Melhor Filme Internacional.
O Que Concluímos Disso Tudo?
“É um filme extremamente sensível, a ditadura não é ilustrada de forma explícita, com tortura. Pelo contrário, você vê os efeitos dela, o impacto numa família. Mas essa intensidade emocional, dramatúrgica, também é de uma violência brutal.” — Adrian Teijido em entrevista para a ABC (Associação Brasileira de Cinematografia).
Ainda Estou Aqui não é apenas um filme sobre a ditadura militar brasileira; é uma reflexão sobre memória, família e resiliência diante da perda. Além de ser uma grande aula de audiovisual. A força de Eunice Paiva representada pela atuação impecável de Fernanda Torres, a fotografia cuidadosa e muito bem situada de Adrian Teijido e a direção sensível de Walter Salles fazem deste filme um marco na história do cinema, reafirmando o poder da arte de manter viva a memória de um povo.
Ainda não assistiu? Então corre pro cinema que o filme ainda está em cartaz! Se quiser esperar, ele será disponibilizado no Globoplay e boatos que em versão estendida! Mas não tem comparação com a emoção na sala de cinema, né?
Diz para gente, você curte esse retorno ao analógico? Gravaria em película e câmeras Super-8 ou prefere evitar esse trabalho todo?
O que achou? Comente abaixo!
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